quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Psicologia de um Vencido

(Augusto dos Anjos)

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influencia má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Anjos, Augusto dos "Psicologia de um Vencido." In: Eu.
30° ed. Rio de Janeiro, liv. Sãoo José, 1965. p. 60.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

viver morrer

poucos vivem para morrer
pois muitos dos que morrem
nem estão vivos

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Como pode?

Estes homens duvidarem da vida
mas ter certeza de morte?

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Canção da serpente

Um som de flauta
doce
volúvel
sensual
de ponta a ponta
com a ponta dos dedos

eu sou a flauta
você o flautista
me tira notas de dor
e prazer
e o perfume da jasmim
flauteando
ponta a ponta
com a ponta dos dedos longos

dedilhando
cada parte de meu corpo
com o enigma de encantar serpentes

de ponta a ponta
você vai me tocando
com a ponta dos dedos
que alcançam a oitava abertura
fazendo uma canção
a qual não compreendo
fazendo dançar
a naja saída do vazo
com sua beleza
com seu veneno
ponta a ponta
com a ponta dos longos dedos

e nesse jogo sou apenas
o frágil e doce instrumento
na ponta de seus longos dedos

Eric Iglésias

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Tritão

Vi um homem na água
e o sol refletiu seu dourado corpo,
enquanto seus olhos se confundiam
com o claro azul do mar
Os meus brilhavam
E duas íris como sóis negros repousavam
sobre o reluzente corpo do homem aquático

E na areia houve um encontro
ao ruivo por do sol
Seu corpo era uma grande praia,
Salgado, molhado
O meu todo o céu,
estrelado, mil astros iluminados
Então no horizonte: céu e mar mesclados

Mas aí veio o amanhecer
pro mar ele voltou
Seu nome uma onda levou
e meu corpo pálido
do crepúsculo raso
e de mil astros, agora, apagados
na brisa morna ficou
a espera do homem...
que nunca retornou.

Eric Iglésias

Nova Ordem Mundial

homens de ferro
dentro de bolsas de ferro
engrenagens que fazem
girar um mundo verde
engrenagens de níquel

os homens se sofisticaram
e não urram mais
com gestos e ligações
encontram ouro
das minas fantasmas
de um tempo de lucros
sem produção

terríveis e asmáticos
homens pálidos da contradição

e uma ação de ferro despenca
enquanto outra vai a alturas
junto de mil aves cruas
servidas ao banquete
de homens canibais
parasitas de seus próprios seres

ferro, capital

Eric Iglésias

Sensações

Sobem e descem como montanha russa
E dão giros em seu próprio eixo,
Adrenalina: lagrima, transpiração

Um beijo que a tudo aquieta,
O pouso de uma asa delta
A imensidão de um vale
Do tamanho da sensação
Que provoca, que invoca
Um beijo, uma palavra
Dão saltos ornamentais
Em um abismo de espinhais
Loucas sensações
Que desejam a última gota de sangue
De momentos a olho nu
Tão banais.

Eric Iglésias

Narciso

O meu Eu está perdido
dentro do olhar de um faraó do antigo Egito
Calado, mas presente
Ouço seus pensamentos:
conflitos e serpentes

Não existem máscaras entre a gente
Dois homens nus em pelo
e meu medo,
que ele também sente
Constelações de estrelas cadentes
fazem parte de uma mesma mente
Um amor que ninguém entende

Levanto, então, a mão direita
em absoluta sincronia com sua esquerda,
que se tocam,
enquanto nossas bocas atam um selo,
um enigma,
um beijo

Na superfície plana de um grande espelho

Eric Iglésias

Abismo

riscado por mim mesmo: nosso amor
como plano de vôo
ou final de novela
crio buraco entre nosso momento
e do outro lado vejo um grande desfecho

mas tem horas que flutuo
entre o horizonte e seus beijos
procurando agulhas no escuro
no essencial abismo de seu peito

Eric Iglésias

Asas

Peço silêncio a todos da casa
E preencho com o som da minha alma
caladas sombras
com as dores da verdade
Com a poesia ultrapasso a realidade
Para que mais do que palmas
Batam-se asas

Eric Iglésias

Faraó

sou viajante sem destino
desvendo esfinges
encantando-as com a volúvel existência
de meus próprios seres em conflito

hora me escondo
hora eu mesmo crio
palácios e pirâmides
e um rio chamado Nilo

ansiando e repudiando
distantes amores
derrubando estrelas cadentes
despertando serpentes
soprando tempestades de areia

me faço mito
desato nó
do antigo Egito
sou faraó

Eric Iglésias

Última Viajem

Silêncio,
Nem prazer nem dor.
Aguarda um racimo de segundo.
Ungüento e morfina,
Calam feridas, águam cimento
Desabam memórias, com brisa morna
Ela não anseia mais por bons momentos.

Um relógio parado enquanto as horas passam,
E deitada, sozinha, a anciã viaja,
Retrograda
Um pérfido tumor, sem sorte
A velha só escuta afiar a foice
A senhora morte

Eric Iglésias

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Diálogos Proibidos

Parte 1 – Messenger

Fábio diz:
Tudo bem?
Bruna diz:
Por que sempre que alguém pergunta: “tudo bem?” alguém sempre responde: “Tudo e você?” e ninguém está interessado na resposta.
Fábio diz:
...!
Algo mal?
Bruna diz:
Há algo estranho.
Fábio diz:
É, o que?
Bruna diz:
Não sei dizer se estou me sentindo bem ou mal.
Fábio diz:
Huuuuuuum... Isso não é estranho.
Bruna diz:
??????
Fábio diz:
Chama-se vida. Ela não é extremista.
Bruna diz:
Queria não precisar, sempre, tomar a decisão correta.
Fábio diz:
... Já pensou em suicídio?
Bruna diz:
... Seria como adiantar o relógio para que acabe logo o dia.
Mas e com você, algo bom?
Fábio diz:
Não, tudo mal. Graças a deus!

28 de outubro de 2008
Eric Iglésias

Ora! Hora...

A manhã é o tempo da mulher, que no ofício de dona de casa, encontra sua utilidade na vida, uma vez que todo lar gira ao seu redor de manhã. A meia dos filhos, a gravata do marido, o cachorro, as plantas... A própria manhã depende dela. As horas se arrastam se estiverem de cama, os maridos se atrasam, os filhos matam aula, o cão ladra e as plantas murcham em desespero. A manhã necessita ser desenrolada.

O anoitecer tem o mesmo significado e os movimentos circulares da colher de pau no preparo da janta parece ser a manivela que faz a lua subir e o sol descer.

Mas a tarde... como é ingrata! Nela se sente perdida e solitária e suas muitas horas parecem alongar-se para além. A tarde é independente e não concede a moça do lar nenhuma oportunidade de interação. Algumas novatas tentam fugir dela com um programa de fofocas, um livro, ou tricô, porém é aí que o entardecer se mostra vingativo e uma fração de segundos torna-se tão perceptível quanto uma mancha de batom no blusão do marido. As mais experientes sentam-se na calçada numa cadeira e esperam pacientemente a passagem dessas horas.

Por fim, nessa luta incansável de ser, matamos a sombra de liberdade expressa no tempo de horas cabais. E, ainda, melhor que a tarde é a madrugada com suas ruas vazias e o céu cheio de estrelas – mas a esta, cada fragmento de segundo cobra sua dívidas ao dia seguinte.

Para quem voa alto não há medidor de tempo capaz de dizer o limite dos minutos.

28 de outubro de 2008
Eric Iglésias

Os desastres de Sofia

Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele.

O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:

- Cale-se ou expulso a senhora da sala.

Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. (...)

(Lispector, Clarice. A legião estrangeira. São Paulo.
Ática. 1977. p 11.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Dez é como domingo. A gente pensa que domingo é o fim da semana passada, não é? Mas já é o começo da outra. A gente pensa que dez é o fim de nove, não é? Mas já é o princípio de onze.
Clarice Lispector

domingo, 26 de outubro de 2008

link

Daquele amor virtual
só sobrou este e-mail devolvido
sem resposta, sem sentido
sem beijo com batom
sem remetente nem poesia
sem ponto com

Sandra Regina (o texto sentido)

sexo social

"sexo!"
todos se espantam
e não falam de sexo
os religiosos da igreja santa,
suas mulheres, crentes, estão carentes
não chegam ao orgasmo
por sua vez os banqueiros
preocupam-se com a queda do dólar,
mas e a do falo?
enquanto os boys se beijando
são de um - outro - mundo (imaginário)

"sexo!"
todos se espantam,
mas seus filhos o banalizam
corrompidos de uma sociedade (sem princípios)
onde a SIDA e cia
assolam a cidade

"sexo!": tabu, descaso.

25 de outubro de 2008
Eric Iglésias

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Âmago, superfície

Minha filosofia é humana
é âmago, superfície
Retratada de maneira rasa
mas vasta como lágrimas de Ísis


24 de outubro de 2008
Eric Iglesias

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

marítimo

Estarei pronta
Para quando entrares
Feito onda...
Invadindo meus lugares incomuns
Arrastando minhas águas
As ressacas de uns mares
Que antes de ter navegantes
Eram praias inexploradas
Estarei fixa e inacabada
Quando chegares festim
Explodindo teu naufrágio
Em mim

Sandra Regina (o texto sentido)

Neologismo

Nossos encontros criam nossos termos
impublicáveis vocábulos...
que riem em bocas que se desejam pronunciar
a qualquer instante...
em qualquer lugar!
Nossas palavras inventadas
cabem apenas nesse teu jogo
que incendeia meu fogo e minha calma
queima a alma e o corpo profano...
Teus indecifráveis verbos
são arrancados das sensações pela metade
que conjugamos no nosso plural
... dizem tudo da nossa vontade:
nossa sintaxe horizontal

Sandra Regina (o texto sentido)

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Quimera

Solto a céu aberto
Vento ao pé da orelha
Sem nenhum destino certo
Chamado de uma negra ovelha

Percorrendo e vivendo
um suspiro a cada momento
Sete chaves,
sete mares,
sete pecados
e um cavalo alado
Transparece a juventude
Ganha-se altitude,
Latitude,
longitude,
atitude

Magnitude de uma quimera
Jovem e etérea
Virtude!

Ser

Sentir
A náusea
O perfume
Os pelos que se arrepiam
Sentir que sou
Sentir minha alma
Sentir minha poesia

A vida que corre
Pelas veias
Sangue amargo
Veias frias
Veias e vias
Sentir-me
Correr-me

Paixão
Cala frio
Dor
Nostalgia

O ócio de cada dia
A melancolia

E refletir
E sentir o reflexo
Sentir que sou o reflexo
Sentir seu reflexo
Sentir-me através de você
Um reflexo

A minha boca na sua boca
E a minha vida
Na sua vida
Me sentir
Te sentir
Nos sentir
E sentir harmonia
Ser sentindo

Eric Iglesias

Voluptuosamente o elo

toda beleza do mundo
nas mãos de um surdo-mudo
como retratá-la com honestidade?

invadindo minha intimidade
procurando no escuro
encontro palavras
com raízes fundas

como ser com dignidade
essa alma tão intensa
toda fragilidade
sensibilidade
à volúpia de ser o elo
entre a estrela e o concreto
a mercê de pássaros de ferro
enfrentar o perigo de sofrer o belo

Culpa

Quantas vezes nos revoltamos calados – educados, contidos e nos guardamos para parecermos sofisticados.

Mas, ainda sim, a casos que a magoa ultrapassa a classe: gritamos, ofendemos, ou simplesmente nos despedimos com rancor.

E quantas vezes nossa decepção é incompreendida? Aguardamos por um pedido de desculpas que não vem e no tom de voz do outro, nos sentimos vítimas, ofendidos a relação parece ir por água abaixo.

Mas afinal, quem tem razão e quem tem culpa? E por vaidade recusamos um beijo na despedida, desligamos o telefone, não respondemos mensagens, fazemos através do silêncio: distância...

Vale tentar ser por todo momento o soberano da relação? Frágil e delicado a quedar-se magoado por um simples atraso?

Então peça desculpas, você mesmo, com irreverência, com leveza e seja então sofisticado. Afinal, a culpa é um nó na garganta – se possuí-lo: desate-o, se não, aperte-o.

11 de outubro de 2008
Eric Iglésias

(ainda sem título)

Como escrever é belo
Por isso todos os poetas
Poetizam a técnica
De fazer poesia
E de fazer a vida poética
- e há beleza em dirigir o carro
- na ferida do homem
- âmago feminino
- essência humana
E todo poeta
se não tem a vida mais alegre
a tem bela:
a terrível beleza da noite,
a leveza do dia,
ou volúpia do crepúsculo

busco para minha vida e poesia
a beleza de horas incontáveis

21 de outubro de 2008
Eric Iglésias

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Alô

- Alô!
- Luciana falando, com quem eu falo?
- Meu nome é Marcus, eu gostaria...
- Bom dia senhor Marcus, em que posso ajudar?
- Não estou conseguindo me conectar...
- Vou estar lhe transferindo para o setor responsável, aguarde um momento.
...
- Adilmo falando, com quem eu falo?
- Bom dia Adilmo, aqui é o Marcus.
- Bom dia senhor Marcus, em que posso lhe ajudar?
- Adilmo, eu não consigo me conectar. Quando eu...
- Você pode me fornecer o número do seu telefone com DDD por gentileza?
- 22 2655 0763
- Está certo Marcus, um minuto... Senhor Marcus, consta em nosso sistema uma fatura pendente do mês de abril (mês passado).
- Ué, está conta estava atrasada, sim, mas eu a paguei no início da semana passada.
- Sendo assim irei lhe encaminhar para o setor financeiro para maiores esclarecimentos.
...
- Bom dia. Berenice falando, com quem eu falo?
- Bom dia Berenice, aqui é Marcus falando, meu telefone é 22 26550763 e consta no sistema de vocês uma fatura atrasada, porém eu a paguei no início da semana passada.
- Senhor este departamento é de faturas indevidas, vou lhe passar para o setor de contas atrasadas.
- Ok...
...
- Alô!
- Claudia falando em que posso ajudar?
- Oi Claudia, meu nome é Marcus e paguei uma conta na semana passada que ainda consta no sistema de vocês.
- Boa tarde, senhor Marcus, por favor, me confirme seu número: 22 26550763?
- Isso!
- Senhor Marcus, em nosso sistema não consta nenhuma fatura atrasada. Talvez não tenha havido registro da fatura paga no sistema de outros setores.
- E o que eu faço?
- Vou lhe enviar para o setor de contas.
- Certo!
...
- Daniel falando, com quem eu falo?
- Com o Marcus...
- Em que posso lhe ajudar, senhor Marcus?
- Consta em alguns sistemas uma conta minha atrasada, mas ela já foi devidamente paga na semana passada.
- Pode me passar o número desta?
- 3076927-04
- Certo senhor Marcus, vamos dar baixa no sistema e dentro de três dias as informações serão enviadas a todos os setores.
- Obrigado!
- mas alguma coisa?
- Eu não estou conseguindo me conectar.
- Vou lhe transferir para o setor de suporte técnico geral.
...
...
...
Ring, ring, ring

- Alô!
- Marcus. Estou na academia te esperando a duas horas, por que você ainda não veio me pegar?
- Vou estar lhe transferindo para o setor de reclamações amor.

15 de outubro de 2008
Eric Iglésias

O homem atrasado e os camarões

Marta entrou no banho quente, esfregou-se, limpou as unhas, lavou os cabelos, atrás das orelhas; saiu do banho, fez as sobrancelhas, limpou o rosto com colônia, passou creme, óleo no corpo; fez as unhas: dos pés, das mãos; pois o vestido, sandálias, penteou os cabelos, ajeitou a aliança, passou batom, pegou sua bolsa e celular. Uff! Antecipada 15minutos.

Marcaram 8:15 na casa de Marta. Ela andava de um lado a outro: 8h, 8:05, 8:10... Sempre se atrasava, mas hoje não! Então entendeu porque Pedro não gostava de esperar. Olhou-se no espelho uma, duas, três vezes... estava pronta, pronta mesmo. Impaciente ligou a TV e assistiu de pé (para não amarrotar o vestido) os comerciais que passavam em cada canal pelos quais passou. 8:20. Pegou o celular dentro da bolsa, mas logo o guardou. Só alguns segundos e escutarei a buzina... Não escutou. Achou que sua testa estava suando, secou-a suavemente com um lenço e sentou.
...
...
...
8:35
- Amor, onde você está?
...
- Reunião, ainda?
...

Cólera! Estava atrasado! Nosso primeiro jantar como noivos e atrasou-se.

Pegou um livro, fechou-o em seguida; olhou para um lado, para o outro; conferiu as unhas; olhou para o teto.

Não se conformou. Depois de tantas reclamações sobre seus atrasos, foi se atrasar justo hoje. Inclusive a fez perder a novela. Marta estava revoltada. Foi quando lembrou de seu perfume. Foi ao banheiro, pegou o frasco e perfumou-se. Foi então que viu uma estranha no espelho e... reconheceu-se e quedou-se absorta. 8:50... Marta Valle, de frente para o espelho, perfumando-se para um homem que está atrasado, perdeu sua novela, tirou bifes da unha – o cara nem pediu desculpas...!

Fechou o vidro de perfume, atirou-se no sofá, assistiu pacientemente os comerciais, dormiu de boca aberta, babou um pouco, sonhou com um ator famoso e foi acordada pelo som de buzina. Levantou-se, desligou a TV, olhou-se no reflexo dela, limpou a baba e foi jantar camarões. E foi o melhor jantar da sua vida.

10 de outubro de 2008
Eric Iglésias

sábado, 11 de outubro de 2008

Liberdade

Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra liberdade, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se têm levantado estátuas e monumentos, por ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar a própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”; nossos avós cantaram: “Ou ficar a pátria livre/ou morrer pelo Brasil!”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade!/ abre as asas sobre nós”; e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos/ brilhou no céu da pátria...” – em certo instante.

Somos pois criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre – como diria o famoso conselheiro... – é não ser escravo. É agir segundo nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo de partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho... Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autômato e de teleguiado – é proclamar triunfo luminoso do espírito. (Suponho que seja isso)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inconscientemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir. (Às vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso...)

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!...) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!...

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da liberdade nas mãos!...

São essas coisas tristes que contornam sobriamente aquele sentimento luminoso da liberdade. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos que falam de asas, de raios fúlgidos – linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...

(Cecília Meireles)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Seção Lispector

Frases que minha mãe copiou na exposição: "Clarice Lispector - A hora da estrela", no CCBB. A qual não pude ir.

“Ver é a pura loucura do corpo”
(Água Viva)

“Fora das horas em que escrevo, não sei absolutamente escrever, será que escrever não é um ofício? Não há aprendizagem, então? O que é? Só me considero escritora no dia em que eu disse: sei como se escreve.
(A descoberta do Mundo)

“Viver não é relatável. Viver não é vivível”
(A paixão segundo G.H.)

“Objetos são tempo parado”
(Água Viva)

“Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo”
(A descoberta do Mundo)

“Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade”
(A paixão segundo G.H.)

“Essa coisa sobrenatural que é viver. O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar”
(A paixão segundo G.H.)

“...E descobri que não tenho um dia-a-dia. É uma vida-a-vida. E que a vida é sobrenatural”
(Água Viva)

“Olhar-se no espelho e dizer-se deslumbrada: como sou misteriosa”
(A descoberta do Mundo)

“O que eu sinto eu não ajo. O que eu ajo não penso. O que penso não sinto. Do que sei sou ignorante. Do que sinto não ignoro. Não me entendo e ajo como se me entendesse”
(A descoberta do Mundo)

Romance LIII ou das palavras aéreas

(Cecília Meireles)

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta:
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa:
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,
ai! Com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que as molha,
- e estais nas mãos dos juízes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!


Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...

Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?

- Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro das perguntas,
com sangue em cada resposta:
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...

Ai, palavras, ai, palavras
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pela janelas,
cortejo, bandeira, tropa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro de aragem...
- sois um homem que se enforca!


Meireles, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro.
Nova Aguilar, 1985. p. 442-94

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Dragões inocentes

dentro de mim
a dor constante
para fora haver
alegrias e prazeres

posso eu
viver duplamente

como quem cria
dragões inocentes?

(sem data)
Eric Iglésias

Água Benta

nesses passeios
por águas claras
vejo o que muitos
não vêem

além da flor
com seu amor
e do céu
com sua mente

vejo longe
e sinto água quente

mais que letra
que alguém assenta
transformo
poça de chuva
em água benta
(sem data)
Eric Iglesias

O quadro

voam os lábios
num beijo azulado,
enquanto dois corpos dançam abraçados
no ritmo do mar quebrando.
e a lua cheia clareia a imagem
sem ofuscar as pintadas estrelas
do quadro animado

os olhares afundam-se em mergulho
dentro da paisagem
de seus olhos claros
e vêem tritões, sereias e peixes alados
30 de maio de 2008
Eric Iglésias

Mirante

num mirante a mais bela vista.

entre os dedos a pele deslizava,
macia, ainda sem pêlos,
e o calor do sangue aquecia,
sobre o frio mar inconstante.

o sexo: instante a instante,
evoluindo, gemido a gemido -
cada qual parecendo evocar:
o homem de córneos do inferno
mas, ainda podendo sentir –
a textura das nuvens.
então o orgasmo de tudo fez inverso

e dos dedos escapavam a lisa pele do desejo,
enquanto o sangue frio banhava o sexo,
sob o pacífico: mornas águas constantes

sorrisos...
e no céu aguardavam os anjos
e todos eram: fiéis amantes

9 de outubro de 2008
Eric Iglésias

Festa das Frutas

A primavera mal chegou e já há em Saquarema a festa das frutas, onde de um lado temos as Laranjas e do outro os Bananas – todos a disputar quem ira levar a coroa do abacaxi.

Embora ambas façam parte de uma mesma salada, os interesses são distintos: As Laranjas defendem a preservação da cesta, enquanto os Bananas acreditam na mudança. E as abobrinhas, embora não sejam frutas, estão sendo usadas constantemente para convencer o júri do merecimento da coroa.

As Laranjas são fortes e estão ácidas, apoiadas por um Maracujá de Gaveta autoritário. Os Bananas, em maior número, estão enfraquecidos pelas partes moles da Banana-mor, que por sua vez está com um pepino nas mãos.

E todos vão cantando vitórias antes da hora.

Enquanto Saquarema, aflita, espera o amadurecimento de novos frutos, ainda verdes, para dar sementes e fazer crescer árvores frondosas.

8 de outubro de 2008
Eric Iglesias

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Liberdade, liberdade!


Praias, morros, lagoas... Imagens que despertam uma leve e fresca sensação primaveril... de liberdade. E realmente eu respiro liberdade: andar nas ruas de madrugada, mergulhar no mar sem ser olhado, andar pelas pedras e sentir o céu bem perto.

Mas quando tudo parece perfeito, você se surpreende com o fascismo de uma política corrupta e torta, onde os comícios milionários são a oportunidade de lazer(tão distante fora da época de eleição) e a compra de voto garante o dinheiro que falta o ano inteiro. Os passarinhos têm suas asas cortadas e seus cabrestos bem atados, e todos se dispõem ao poderio de um coronel, ou deputado estadual(como você preferir) chamado Paulo Melo, ex vendedor de cocada - hoje o Rei da Cocada Preta(queimada de desgosto).

Com seus sítios e mansões reúne uma fortuna de milhões e embora não desfile com seus carros importados por Saquarema(talvez para não danificá-los nos buracos dessas ruas) os deve possuir. Que fortuna para um deputado estadual! E além de tudo, como príncipe inglês, tem o costume de caçar, mas não alces, ou aves... não! Cassa políticos e creio eu que deve ser adepto da seguinte política: cassar para não ser cassado.

O deputado disse na rádio, que não sabe o que o povo quer(foi por isso que perdeu), pois bem, o que nós não queremos é uma UPA – que deve ser um UPA, UPA cavalinho, ou um abraço apertado – não queremos asfalto em nossas portas, pois lugar de asfalto é na rua(de preferência sem buracos), mas, o mais importante – Não queremos promessas vãs. Médicos e aparelhos em nossos postos e hospitais, ruas sem buracos e o saneamento básico, que é tão básico e esperamos faz tanto tempo, já está de bom tamanho. Pense nisso na sua próxima campanha e dê um UPA na sua mulher em consolo desta.

A manifestação do deputado na rádio foi em resposta ao surpreendente resultado das urnas nessas eleições, em que sua mulher perdeu para o candidato da oposição Dalton Borges, que já teve problemas com o TSE antes mesmo de assumir(o que nos aguarda?!), mas, apesar de tudo, Saquarema pode respirar mais uma vez os ares de liberdade fora das épocas de eleições. Os pássaros voam, os surfistas pegam suas ondas, os militantes do PRB de Dalton Borges comemoram. Alguns choram, mas num país democrático, a alegria é da maioria.

Enquanto isso o Partido do Movimento Democrático parece ir muito a frente e deixa pra trás a democracia, de certo deputado estadual, que arbitrariamente e vingativamente fechou seu centro social com uma placa dizendo: “Fechado por motivos de ingratidão”. Ele está amuado... Precisando de um UPA?

6 de outubro de 2008
Eric Iglesias