quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Psicologia de um Vencido

(Augusto dos Anjos)

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influencia má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Anjos, Augusto dos "Psicologia de um Vencido." In: Eu.
30° ed. Rio de Janeiro, liv. Sãoo José, 1965. p. 60.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

viver morrer

poucos vivem para morrer
pois muitos dos que morrem
nem estão vivos

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Como pode?

Estes homens duvidarem da vida
mas ter certeza de morte?

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Canção da serpente

Um som de flauta
doce
volúvel
sensual
de ponta a ponta
com a ponta dos dedos

eu sou a flauta
você o flautista
me tira notas de dor
e prazer
e o perfume da jasmim
flauteando
ponta a ponta
com a ponta dos dedos longos

dedilhando
cada parte de meu corpo
com o enigma de encantar serpentes

de ponta a ponta
você vai me tocando
com a ponta dos dedos
que alcançam a oitava abertura
fazendo uma canção
a qual não compreendo
fazendo dançar
a naja saída do vazo
com sua beleza
com seu veneno
ponta a ponta
com a ponta dos longos dedos

e nesse jogo sou apenas
o frágil e doce instrumento
na ponta de seus longos dedos

Eric Iglésias

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Tritão

Vi um homem na água
e o sol refletiu seu dourado corpo,
enquanto seus olhos se confundiam
com o claro azul do mar
Os meus brilhavam
E duas íris como sóis negros repousavam
sobre o reluzente corpo do homem aquático

E na areia houve um encontro
ao ruivo por do sol
Seu corpo era uma grande praia,
Salgado, molhado
O meu todo o céu,
estrelado, mil astros iluminados
Então no horizonte: céu e mar mesclados

Mas aí veio o amanhecer
pro mar ele voltou
Seu nome uma onda levou
e meu corpo pálido
do crepúsculo raso
e de mil astros, agora, apagados
na brisa morna ficou
a espera do homem...
que nunca retornou.

Eric Iglésias

Nova Ordem Mundial

homens de ferro
dentro de bolsas de ferro
engrenagens que fazem
girar um mundo verde
engrenagens de níquel

os homens se sofisticaram
e não urram mais
com gestos e ligações
encontram ouro
das minas fantasmas
de um tempo de lucros
sem produção

terríveis e asmáticos
homens pálidos da contradição

e uma ação de ferro despenca
enquanto outra vai a alturas
junto de mil aves cruas
servidas ao banquete
de homens canibais
parasitas de seus próprios seres

ferro, capital

Eric Iglésias

Sensações

Sobem e descem como montanha russa
E dão giros em seu próprio eixo,
Adrenalina: lagrima, transpiração

Um beijo que a tudo aquieta,
O pouso de uma asa delta
A imensidão de um vale
Do tamanho da sensação
Que provoca, que invoca
Um beijo, uma palavra
Dão saltos ornamentais
Em um abismo de espinhais
Loucas sensações
Que desejam a última gota de sangue
De momentos a olho nu
Tão banais.

Eric Iglésias

Narciso

O meu Eu está perdido
dentro do olhar de um faraó do antigo Egito
Calado, mas presente
Ouço seus pensamentos:
conflitos e serpentes

Não existem máscaras entre a gente
Dois homens nus em pelo
e meu medo,
que ele também sente
Constelações de estrelas cadentes
fazem parte de uma mesma mente
Um amor que ninguém entende

Levanto, então, a mão direita
em absoluta sincronia com sua esquerda,
que se tocam,
enquanto nossas bocas atam um selo,
um enigma,
um beijo

Na superfície plana de um grande espelho

Eric Iglésias

Abismo

riscado por mim mesmo: nosso amor
como plano de vôo
ou final de novela
crio buraco entre nosso momento
e do outro lado vejo um grande desfecho

mas tem horas que flutuo
entre o horizonte e seus beijos
procurando agulhas no escuro
no essencial abismo de seu peito

Eric Iglésias

Asas

Peço silêncio a todos da casa
E preencho com o som da minha alma
caladas sombras
com as dores da verdade
Com a poesia ultrapasso a realidade
Para que mais do que palmas
Batam-se asas

Eric Iglésias

Faraó

sou viajante sem destino
desvendo esfinges
encantando-as com a volúvel existência
de meus próprios seres em conflito

hora me escondo
hora eu mesmo crio
palácios e pirâmides
e um rio chamado Nilo

ansiando e repudiando
distantes amores
derrubando estrelas cadentes
despertando serpentes
soprando tempestades de areia

me faço mito
desato nó
do antigo Egito
sou faraó

Eric Iglésias

Última Viajem

Silêncio,
Nem prazer nem dor.
Aguarda um racimo de segundo.
Ungüento e morfina,
Calam feridas, águam cimento
Desabam memórias, com brisa morna
Ela não anseia mais por bons momentos.

Um relógio parado enquanto as horas passam,
E deitada, sozinha, a anciã viaja,
Retrograda
Um pérfido tumor, sem sorte
A velha só escuta afiar a foice
A senhora morte

Eric Iglésias

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Diálogos Proibidos

Parte 1 – Messenger

Fábio diz:
Tudo bem?
Bruna diz:
Por que sempre que alguém pergunta: “tudo bem?” alguém sempre responde: “Tudo e você?” e ninguém está interessado na resposta.
Fábio diz:
...!
Algo mal?
Bruna diz:
Há algo estranho.
Fábio diz:
É, o que?
Bruna diz:
Não sei dizer se estou me sentindo bem ou mal.
Fábio diz:
Huuuuuuum... Isso não é estranho.
Bruna diz:
??????
Fábio diz:
Chama-se vida. Ela não é extremista.
Bruna diz:
Queria não precisar, sempre, tomar a decisão correta.
Fábio diz:
... Já pensou em suicídio?
Bruna diz:
... Seria como adiantar o relógio para que acabe logo o dia.
Mas e com você, algo bom?
Fábio diz:
Não, tudo mal. Graças a deus!

28 de outubro de 2008
Eric Iglésias

Ora! Hora...

A manhã é o tempo da mulher, que no ofício de dona de casa, encontra sua utilidade na vida, uma vez que todo lar gira ao seu redor de manhã. A meia dos filhos, a gravata do marido, o cachorro, as plantas... A própria manhã depende dela. As horas se arrastam se estiverem de cama, os maridos se atrasam, os filhos matam aula, o cão ladra e as plantas murcham em desespero. A manhã necessita ser desenrolada.

O anoitecer tem o mesmo significado e os movimentos circulares da colher de pau no preparo da janta parece ser a manivela que faz a lua subir e o sol descer.

Mas a tarde... como é ingrata! Nela se sente perdida e solitária e suas muitas horas parecem alongar-se para além. A tarde é independente e não concede a moça do lar nenhuma oportunidade de interação. Algumas novatas tentam fugir dela com um programa de fofocas, um livro, ou tricô, porém é aí que o entardecer se mostra vingativo e uma fração de segundos torna-se tão perceptível quanto uma mancha de batom no blusão do marido. As mais experientes sentam-se na calçada numa cadeira e esperam pacientemente a passagem dessas horas.

Por fim, nessa luta incansável de ser, matamos a sombra de liberdade expressa no tempo de horas cabais. E, ainda, melhor que a tarde é a madrugada com suas ruas vazias e o céu cheio de estrelas – mas a esta, cada fragmento de segundo cobra sua dívidas ao dia seguinte.

Para quem voa alto não há medidor de tempo capaz de dizer o limite dos minutos.

28 de outubro de 2008
Eric Iglésias

Os desastres de Sofia

Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele.

O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:

- Cale-se ou expulso a senhora da sala.

Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. (...)

(Lispector, Clarice. A legião estrangeira. São Paulo.
Ática. 1977. p 11.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Dez é como domingo. A gente pensa que domingo é o fim da semana passada, não é? Mas já é o começo da outra. A gente pensa que dez é o fim de nove, não é? Mas já é o princípio de onze.
Clarice Lispector